Escritor de no mínimo nove livros de ficção, pai do ciberespaço e do steampunk, tuiteiro, William Gibson contribuiu para uma reportagem de capa da revista Wired (de novo ela) em 2005. A matéria “Remix Planet” versava sobre o estado das recombinações até então, seja na literatura de Gibson, na música do Gorillaz, no cinema de Tarantino ou em outras diversas áreas que sempre tiveram referências explícitas e implícitas em outras obras. Em seu texto, o autor conta um pouco da influência que teve de outro William escritor, o beat Burroughs, e de sua visão da cultura remix. Novamente, não foi um texto fácil de se passar para o português, portanto se algum estudioso da obra dele aparecer por aqui, como a Adriana Amaral ou o Fábio Fernandes, por favor nos corrijam. É ano de copa, e mais grave ainda mês de copa, então estamos numa fase atribulada. A rica reportagem também trazia um gráfico mui interessante sobre a história do remix no século XX, conferível logo depois da tradução. Apreciem que mais coisa da revista vem por aí.
Confissões de um artista plagiador.
Quando eu tinha 13 anos, em 1961, eu secretamente adquiri uma antologia da Geração Beat – pressentindo, corretamente, que minha mãe não iria aprovar.
Imediatamente, e para minha grande excitação, eu descobri Allen Ginsberg, Jack Kerouac, e um William S. Burroughs – autor de alguma coisa chamada Almoço Nu, extraído ali com todo o seu brilhantismo cintilante.
Burroughs era então como um literato radical tal como o mundo tinha para oferecer, e na minha opinião, ele ainda detém o título. Nada, em toda a minha experiência de literatura até então, foi tão marcante para mim, e nada jamais teve um efeito tão forte sobre o meu senso das íngremes possibilidades da escrita.
Mais tarde, tentando entender esse impacto, descobri que Burroughs havia incorporado fragmentos de textos de outros escritores em seu trabalho, uma ação que eu sabia que meus professores teriam chamado plágio. Alguns destes empréstimos foram furtados da ficção científica americana dos anos 40 e 50, adicionando um choque secundário de reconhecimento para mim.
Até então eu sabia que este “método cut-up”, como Burroughs chamava, era central para o que seja que ele pensou que estava fazendo, e que literalmente acreditava que fosse semelhante à magica. Quando ele escreveu sobre o seu processo, os cabelos do meu pescoço se levantaram, tão palpável foi a emoção. Experimentos com fita de áudio inspiraram-no de uma maneira similar: “brinquedinho de Deus” foi como seu amigo Brion Gysin chamou o toca-fitas deles.
Sampling. Burroughs estava interrogando o universo com uma tesoura e um pote de cola, e a mínima imitação de outros autores não era considerada plágio.
Uns 20 anos depois, quando nossos caminhos finalmente se cruzaram, eu perguntei à Burroughs se ele ainda estava escrevendo em um computador. “Para que eu ia querer um computador?” perguntou ele, com evidente desgosto. “Eu tenho uma máquina de escrever.”
Mas eu já sabia que um processador de texto era outro dos brinquedinhos de Deus, e que a tesoura e o pote de cola estavam sempre lá para mim, no desktop do meu Apple IIc. Os métodos de Burroughs, que também funcionaram para Picasso, Duchamp e Godard, foram construídos para a tecnologia através da qual eu agora componho minhas próprias narrativas. Tudo o que eu escrevi, acreditava instintivamente, era uma extensa colagem. Finalmente o significado parecia uma questão de dados adjacentes.
Depois, explorando possibilidades do (assim chamado) ciberespaço, eu preenchi minhas narrativas com referências a um ou outro tipo de colagem: o AI em Count Zero [romance de Gibson, publicado em 1986, traduzido para o Brasil com o mesmo título] que emula Joseph Cornell, o ambiente de assembléia construído sobre a Ponte da Baía em Virtual Light [outro romance de Gibson, publicado em 1993, sem tradução para o português].
Enquanto isso, no início dos anos 70 na Jamaica, King Tubby e Lee “Scratch” Perry, grandes visionários, foram desconstruindo a música gravada. Usando um espantosamente primitivo hardware pré-digital, eles criaram o que chamaram de versões. A natureza recombinante dos seus meios de produção rapidamente se espalhou para DJs em Nova York e Londres.
Nossa cultura não se importa mais em usar as palavras como apropriação ou empréstimo para descrever estas muitas atividades. A audiência de hoje não está escutando tudo; está participando. Na verdade, audiência é um termo tão antigo como gravação, um arcaicamente passivo, outro arcaicamente físico. A gravação, e não o remix, é a anomalia hoje. O remix é a verdadeira natureza do digital.
Hoje, um processo interminável, recombinante e fundamentalmente social gera horas incontáveis de produto criativo (um outro termo antigo?). Dizer que isso representa uma ameaça para a indústria fonográfica é simplesmente cômico. A indústria do disco, embora não saiba ainda, tem seguido o caminho da gravação. Em vez disso, o recombinante (o bootleg, o remix, o mash-up) se tornou a característica central na virada dos nossos dois séculos.
Vivemos em um momento peculiar, em que o registro (um objeto) e a recombinação (um processo) ainda, embora brevemente, coexistem. Mas parece haver poucas dúvidas quanto à direção que as coisas estão indo. A recombinação é manifestada em formas tão diversas como a graphic novel de Alan Moore, A Liga Extraordinária, machinimas [imagens de games editadas como se fossem um filme] geradas com mecanismos de jogo (Quake, Doom, Halo), toda a biblioteca metastasiada de remixes do Grito de Dean, distorção de gênero fan fiction dos universos de Star Trek ou Buffy ou (mais satisfatório, de longe), ambos de uma vez, a Edição Fantasma sem JarJar Binks (som de uma audiência votando com seus dedos), tênis esportivos híbridos de marcas, felizmente transgressores de logotipo de salto em distância, e produtos como as figuras Kubrick, colecionáveis do Japão que são astutamente mascarados como desalmadas unidades corporativas, resgatados do anonimato através da aplicação de uma cuidadosa e agressiva pintura “customizada”.
Nós raramente legislamos sobre novas tecnologias que nascem. Elas surgem, e nós mergulhamos com elas em quaisquer vórtices de mudança que elas gerem. Nós legislamos após o fato, em um jogo perpétuo de pega-pega, tanto melhor quanto podemos, enquanto nossas novas tecnologias nos redefinem – tão certamente e talvez tão terrível como temos sido redefinidos pela televisão.
“Quem é o dono das palavras?” perguntou uma desencarnada mas muito persistente voz durante a maior parte da obra de Burroughs. Quem é o dono delas agora? Quem é dono da música e do resto da nossa cultura? Nós somos. Todos nós.
Embora nem todos saibamos disso – ainda.
O mais recente romance de William Gibson é Reconhecimento de Padrões [edição brasileira pela Aleph, tradução de Fábio Fernandes].
Um comentário:
Valeu pela força.
Abraços.
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